sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Choro

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
as crianças violadas
nos muros da noite
húmidos de carne lívida
onde as rosas se desgrenham
para os cabelos dos charcos.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
diante desta mulher que ri
com um sol de soluços na boca
— no exílio dos Rumos Decepados.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
este sequestro de ir buscar cadáveres
ao peso dos poços
— onde já nem sequer há lodo
para as estrelas descerem
arrependidas de céu.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
a coragem do último sorriso
para o rosto bem-amado
naquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhos
com as mãos ainda à procura do eterno
na carne de despir,
suada de ilusão.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
todas as humilhações das mulheres de joelhos nos tapetes da súplica
todos os vagabundos caídos ao luar onde o sol para atirar camélias
todas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueleto de repente dos espelhos
todas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidos para o sopro do
silêncio
todas as crianças com cães batidos no crispar das bocas sujas
de miséria...

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro...

Mas não por mim, ouviram?
Eu não preciso de lágrimas!
Eu não quero lágrimas!

Levanto-me e proíbo as estrelas de fingir que choram por mim!

Deixem-me para aqui, seco,
senhor de insónias e de cardos,
neste ódio enternecido
de chorar em segredo pelos outros
à espera daquele Dia
em que o meu coração
estoire de amor a Terra
com as lágrimas públicas de pedra incendiada
a correrem-me nas faces
— num arrepio de Primavera
e de Catástrofe!


José Gomes Ferreira

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Pastoral

Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
baínha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.

Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.

Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.
António Gedeão

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Poema aos homens constipados


Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
Anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão-de-ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

António Lobo Antunes

terça-feira, 20 de julho de 2010

Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio

Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Saudades

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?...

Se o sonho foi tão alto e forte

Que pensara vê-lo até à morte

Deslumbrar-me de luz o coração!



Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!

Que tudo isso, Amor, nos não importe.

Se ele deixou beleza que conforte

Deve-nos ser sagrado como o pão.



Quantas vezes, Amor, já te esqueci,

Para mais doidamente me lembrar

Mais decididamente me lembrar de ti!



E quem dera que fosse sempre assim:

Quanto menos quisesse recordar

Mais saudade andasse presa a mim!



Florbela Espanca

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Canção da Partida

Ao meu coração um peso de ferro

Eu hei de prender na volta do mar.

Ao meu coração um peso de ferro... Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,

As penas do amor não queira levar...

Marujos, erguei o cofre pesado, Lançai-o ao mar.

E hei de mercar um fecho de prata.

O meu coração é o cofre selado.

A sete chaves: tem dentro uma carta...

_ A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves, _ a carta encantada!

E um lenço bordado... Esse hei de o levar,

Que é para o molhar na água salgada

No dia em que enfim deixar de chorar.



Camilo Pessanha,